31 agosto 2003

Apaziguar a dor...



Apaziguar a dor...


Será que ao encontrarmo-nos com o silêncio dos locais tão bem conhecidos,
que foram mutando ao longo do tempo,
já muito tempo,
mais de uma vintena de anos,
talvez mesmo já um quarto de século,
nos vem à memória agradáveis momentos que passaram na infância,
na qual nos sentíamos seguros... ou não...

Será que acontece sempre ?

Quando chego ao varadim silencioso
e estou completamente só,
eu, a casa, a água, as redes brasileiras penduradas,
tal fotografia de revista de decoração,
ou como todos imaginamos a casa de campo confortável dos nossos sonhos,
sinto algo estranho invadir-me.
Estranhamente sinto uma mistura de solidão e de preenchimento insuportável.
Mas que igualmente estranho um sentimento apaziguador das dores,
tantas vezes insuportáveis.

Quem me conhece mal,
não imagina sequer uma pequena parte da dor que me consome diariamente,
que tantas vezes me perturba o sono subtilmente
sem que disso me aperceba racionalmente.

Acho que não tem passado um único dia em que a dor não bata à porta.
Há dias em que essa dor é mais suportável,
por vezes é apenas uma passagem muito rápida.

Passa apenas para não me esquecer dela,
consome-me devagarinho, muito devagarinho e envelhece-me...

Apesar de alguns me darem uma idade muito mais jovem
do que a que realmente tenho.
talvez se deva ao meu ar jovial e peculiar da minha maneira de vestir
ou mais raramente da minha maneira de ser,
quando a dor não é tão forte.

Aqui não há luz de uma vela,
mas de um bonito candeeiro de pé que me ilumina o ecrã
e o teclado e os dedos com que escrevo o apaziguamento que sinto
quando os dedos tocam as teclas ao de leve.

Teclo, teclo, teclo, teclo no meio deste silêncio,
perturbado apenas pelo barulho de um pardal de telhado,
de um grilo, pela queda de uma pinha,
do miar do gato ou do ladrar do cão bem lá no fundo.

Sinto o peito apertado,
mas mais apaziguado pelo silêncio da solidão.

Só eu... a noite, uma grande lua em quarto minguante.
É uma boa fase da lua para terminar projectos,
fazer limpezas e arrumações.

Dizem...

Estou calmamente só com os meus pensamentos...
por vezes menos agradáveis, as dúvidas e as incertezas,
mas também a fé e a esperança.

Aparentemente,
agora,
nada mais me faz falta...

Ilusão !


Como se me pudesse alimentar da escrita e de um simples café com adoçante!
Como se pudesse viver muito tempo sem contacto humano!
Amanhã quando o Sol nascer vou sentir falta de uma voz,
de um cheiro humano, de uma boa conversa ou discussão.

Amanhã quando o Sol raiar vou sentir a falta de ti!
Hoje não!
Hoje medito, hoje sinto ilusoriamente que nada mais preciso para sobreviver
do que esta luz, este silêncio, estas teclas, este ecrã,
o sino que toca na aldeia e do café aqui ao meu lado.

Apetecia-me um cigarro.
Nem os vou procurar!
Certamente haverá algum maço perdido por aqui numa casa de fumadora
que não está presente!
Receio que cada vez menos presente na minha intimidade...
Receio tanto...

As boas memórias
que vêm como faíscas para me queimarem
quando tenho as mãos na energia do varadim de madeira lá fora,
recordam-me que antigamente acreditava no valor da Família,
não como sendo uma instituição,
mas como algo espontâneo e natural ...

Será que estava enganada pela ingenuidade ?
Não encontro o Amor antigo que protegia
e que me fazia sentir coesão.
Não vejo essa coesão há bem mais de 10 anos... Deus...
Agora que escrevo me apercebo que são já tantos anos... dez ...

Esta dor violenta que me trespassa a garganta e o estômago...

O silêncio parece tudo apaziguar...
Mas sei que quando ele terminar o apaziguamento foge,
esconde-se na escuridão...

O café arrefeceu...


E o meu coração quente da revolta ? Arrefeceu ? Arrefece?

Tem arrefecido ...

As pessoas de antigamente parece já não terem um lugar doce dentro de mim...
Perdi-me delas, do seu coração...
Por vezes sinto o coração a gelar devagarinho... e com ele a alma a arrefecer...

A exaltação das convicções dá sempre mais tarde lugar ao seu arrefecimento ...

Tenho medo de ficar com a alma escura...
Arrefeço pois,
por vezes,
não consigo encontrar aquele sentido que preciso de sentir
para continuar em frente.

Bebo o meu café
e sinto-me completamente embriagada pelo silêncio...
Ou será que me sinto embriagada
pelo reencontro com a infância,
da qual não tenho quase recordações?
Ou se as tenho sinto uma nostalgia de dor,
como se fosse uma pessoa já velha...
que não sou...


Toca o telefone ... e embriaguez cessou...


Algures num local Silencioso na Serra da Estrela
31 Agosto 2003

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