27 julho 2004

Analogias e Metáforas Naturais



Analogias e Metáforas Naturais


Finalmente terminado - "O Vendedor de Passados" depois de semanas a ler aos poucos.
Não gosto de ler aos poucos.
Tudo de uma vez faz mais o meu gosto - condimentado depois com os sublinhados.
Isto significa apenas que estou de férias.

Anteontem cheguei à ultima página de "O Código de Da Vinci".
Não dei, com toda a certeza, por terminada a sua leitura.
Depois de menos de 48 horas de puro devorar de páginas,
prometi a mim mesma que voltarei a ele, um dia com calma,
acompanhada por documentação e ilustrações desse génio do Conhecimento.

Mas isso é com outra Insónia -
Leitura d' "O Código de Da Vinci".

Como estava a dizer terminei "O Vendedor de Passados".
Identifiquei-me com a escrita de José Eduardo Agualusa.
Confesso que não tanto com a história.
Talvez por me ter identificado, por exemplo, com:



Félix Ventura estuda os jornais enquanto janta, folheia-os atentamente, e se
algum artigo lhe interessa assinala-o a tinta lilás com uma caneta. Termina de
comer e então recorta-o com cuidado e guarda-o num arquivo.

O meu interesse não está em Félix, nem na tinta lilás - detesto lilás!
Os seus objectivos na pesquisa de textos jornalísticos
- o tráfico de memórias - chegam a repugnar-me.
Simultaneamente não deixam de me fascinar.
Apenas me interessam os actos de sublinhar páginas de jornais,
de as recortar para de seguida as arquivar.

Tão enigmático livro.
Talvez tão verdadeiro.
As memórias serão sempre uma reinvenção do passado.
Há passados mais reais que outros...
Mas o que me faz aqui escrever estas linhas são as constantes analogias e metáforas naturais, saídas também elas de um Mundo Natural.

Ah! Já me esquecia, a história deste livro é contada por uma osga!
Agualusa refere-se constantemente a características oriundas desse Mundo tão desconhecido.



Descobri que certas espécies de osgas podem produzir sons fortes,
semelhantes a gargalhadas.
Os homens ignoram quase tudo sobre os pequenos seres
com os quais partilham o lar. Ratos, morcegos, baratas, formigas,
ácaros, pulgas, moscas, mosquitos, aranhas, minhocas, traças,
térmitas, percevejos, bichos de arroz caracóis, escaravelhos. (p.32)

Lá vão alguns exemplos do jogo de palavras:


..., o sol silencia os pássaros, açoita as árvores, derrete o asfalto.(p.19)
Um imenso abacateiro levanta-se, frondoso, precisamente ao centro
do quintal.(p.20)

O estrangeiro comia com um apetite radiante, como se saboreasse
não a carne firme do pargo mas a vida inteira dele, anos e anos
deslizando entre a súbita exploração dos cardumes, o turbilhão das águas,
os densos fios de luz que, nas tardes de sol, caem a prumo sob o abismo azul.
(p.53)

Abriu as mãos e vi que estavam cheias de um lume verde, furtivo, uma matéria
encantada que rapidamente se dispersou na escuridão. «Pirilampos», segredou
(p.65).

Ajoelhei-me na lama e o rio veio lamber-me as mãos (p.65).

Vi-o avançar pelo metal das águas até desaparecer (p.65).

O rio, deitado aos pés da floresta, tinha finalmente adormecido.
Continuei ali, muito tempo, com a certeza de que se me esforçasse,
se ficasse inteiramente imóvel, desperto, se me tocasse na alma, eu sei lá!,...
(p.65-66)

Venho estudando desde há semanas José Buchmann. Observo-o a mudar.
Não é o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás.
Algo, da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem operando no seu íntimo. É talvez, como nas crisálidas, o secreto alvoroço das enzimas dissolvendo órgão. Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. [...] Não estou a sugerir que dentro de alguns dias irrompa de dentro dele, sacudindo grandes asas multicolores, uma imensa borboleta (p.75-76).

Era como se de chovesse noite. Explico melhor: era como se do céu caíssem grossos fragmentos desse oceano escuro e sonolento no qual navegam as estrelas (p.85).

O Silêncio entre eles era cheio de murmúrios, de sombras, de coisas que corriam ao
longe, numa época distante, escuras e furtivas. Ou talvez não. Provavelmente
ficaram apenas calados, um em frente do outro, porque nada acharam para falar, e
eu imaginei o resto (p.100).

Reclinou-se no banco e mergulhou os olhos no fundo assombro do céu. Temi que fosse saltar para dentro dele. [...] Não me conseguia lembrar de alguma vez, na minha outra vida, ter estado ali. Cactos enormes, alguns com vários metros de altura, erguiam-se por entre as dunas, atrás de nós, também eles deslumbrados pelo ímpido fulgor do mar. Um banco de flamingos deslizou num calmo incêndio através do céu azul (p.104-105).

A chuva avançava através do céu iluminado e nós corríamos aos saltos diante
daquela água grossa, muito limpa, bebendo o perfume da terra molhada (p.116).

... o sapo é símbolo de transformação, de metamorfose espiritual, representando a passagem para um estádio superior de consciência. (p.172)

A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. [...]
..., as aves debicando a manhã, como a um fruto. Vemos, além, um rio sereno e o
arvoredo que o abraça. [...] Algumas estão já tão longe, e o comboio avança tão
veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez as tenhamos
sonhado. (p.179)


10 a 27 Julho 2004




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